A cidade pode até estar submersa, mas, por meio da arte, ela agora emerge e traz consigo as histórias, lembranças e personagens vividos no espaço invadido pelas águas. Por iniciativa do cineasta Carlos Segundo, o documentário “No fundo nem tudo é memória”, exibido em estreia para convidados neste fim de semana, a vizinha cidade de Nova Ponte ressurge das águas em depoimentos emocionantes de ex-moradores e construções fictícias de outros depoentes.
O cineasta brinca com os espectadores ao trazer para o documentário o testemunho de pessoas não originárias da cidade inundada em meados da década de 1990. Em um primeiro momento, a plateia acredita que tais entrevistados seriam nativos, até perceber que eles estão ali compartilhando lembranças de outros lugares e construindo, juntos e por intermédio do autor, apenas uma cidade imaginária. Um interessante processo de criação artística que dá ao espectador a licença poética de imaginar-se também imerso nessas lembranças.
Há, nos depoimentos, um contraponto que ressalta e valoriza a proposta do documentário. A riqueza concentra-se nas falas daqueles que são realmente originários do local. A carga emotiva das lembranças de um espaço percorrido por anos a fio e agora adormecido na profundidade da represa faz com que as frases, em alguns momentos de grande simplicidade, tenham peso dramático e façam emergir, por exemplo, histórias de pescadores e benzedeiras.
Em outro extremo, entrevistados intelectualizados, com um pontual e sofisticado discurso, “constroem” uma memória afetiva, inexistente em relação aos nativos, baseada em outras referências arquitetônicas e geográficas e na leitura personalizada do que significaria retirar do mundo, pelo menos do mundo tangível, os primórdios de sua vida. A participação dessa “cidade imaginária” em um documentário que tem como foco lugar que um dia já foi real, dá um tom lúdico a um formato de cinema que, muitas vezes, tende a tornar-se denso.
Carlos Segundo teve como convidados os professores Heliana Nardim, Lu de Laurentiz, Luiz Avelino, Salma Abdulmassih e Umberto Tavares, além de poetas como Danislau e Guimarães Lobo, todos com citações bucólicas de um passado não vivido, mas imaginado, ou comparado com outros lugares, outras cidades. A referência destes olhares poéticos e distantes da “tragédia” que possa representar o acontecimento para os nativos trouxe leveza ao filme, leveza acentuada também pelo olhar imagético do cineasta, cuja câmera subjetiva, nos entremeios, tem leitura na bela fotografia do filme, de autoria compartilhada com Roberto Chacur.
Um documentário que brinca com as lembranças. E pode ser guardado no fundo da memória.
Por Carlos Guimarães Coelho Jornalista e produtor cultural e crédulo de que as artes, em todas as suas modalidades, têm poder transformador
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